Os corpos moviam-se ridiculamente ao som de uma guitarra pós-punk. Corpos que se alimentam quase exclusivamente de sons e palavras. As máscaras, meticulosamente colocadas pelos dedos conhecedores das duas realidades, espreitavam com uma maliciosa ingenuidade. Olho para a esquerda e vejo a americana.
Meia hora antes, fodido com a outra que não apareceu, após duas ou três cervejas, talvez seis ou nove, comento com o Pedro,
- aquela tipa é brutal.
O gajo retrucou - epá, a gaja é americana!
Entre risos soltei um – vai-te foder.
Sob um gesto flutuante, respondeu - sério, já sei tudo sobre ela.
Os meus cépticos olhos não acreditavam - fode-te pá.
- epá, ouvi-a a falar ao telefone.
- ah…rimos um pouco da situação.
Estava estranhamente sozinha, encostada à parede, sob pouca luz, apoiada na sombra que agora resplandecia. O cabelo, escorrido, confundia o olhar. Os olhos, fundos, eram de uma beleza fria e difusa que cegava. O rosto era de um fascínio cruel e misterioso, paisagem amena e violenta. Agora que penso nisso tinha algo de anos 70, de rock, de Joy Division e Sonic Youth.
O primeiro concerto tinha sido surreal. Não sei se bom, se uma merda. Talvez uma merda, mas pelo menos cómico. Cena pseudo-alternativa, com distribuição de pedras incluída para quem estava junto ao palco, além do contacto com cabos e mais umas merdices perdidas pelo sujo do palco, oferecida, talvez na busca de algo superior e improfícuo – a epifania tenebrosa de um casal estupidamente indie e estranho e anormalmente alto e estranho (o tipo era uma mistura de Caniggia e Fernando Torres). Álgebra maquilhada imperceptível aos olhos.
Recebi uma das pedras ao mesmo tempo que, gozando, ofereci o telemóvel ao Torres. Mas o tipo não gostou muito da brincadeira. Toda a gente riu. Senti-me um incólume pavão. O Pedro não parava,
– tens de ir falar com a americana.
– epá, não.
– foda-se, pode ser a mulher da tua vida.
Bem, pelo menos era parvamente linda. De uma vil e bárbara beleza que nos esmagava a todos. Lembrei-me de lhe oferecer a pedra que havia recebido do Torres e fi-lo juntando as duas mãos, entregando-lhe o místico objecto, ostensivamente tentando galar. Tinhas as penas erguidas e exibi um humedecedor ritual de acasalamento, mostrando toda a minha urdida masculinidade. Ela sorriu, muito. Largamente até, talvez por ter sido apanhada desprevenidamente.
Após mais umas cervejas, quatro ou cinco (a contagem certa daquilo que bebemos é importantíssima para a classe dos homens), o concerto principal finalmente começou. Aquele brilho inumano embebedava-me. Tinha dificuldades em conseguir não olhar para a americana. No fundo, não conseguia parar de conjecturar sobre como, quem seria e todas essas filhas-da-putice que me fazem viajar por entre a prolixidade das formas. Vi-lhe uma beleza palpitante e impenetrável. Algo que provinha de dentro como a luz do dia e aquilo não podia ser compassivo. Mas era muito mais do que isso. Havia algo de errado. Ou então de certo. De completamente certo.
O concerto foi melhorando de música para música. O Pedro não se calava e espicaçava-me para ir falar com ela. Não devia ser o único (não era de certeza). Ganhei coragem, enquanto engolia em seco e respirava fundo, ao mesmo tempo que o Pedro continuava como que atiçando um inocente rottweiller numa luta, até que, por entre uma música qualquer, fui falar com ela.
– i bet i’ll guess where you’re from!
Ela, interessada, respondeu – where?
Convictamente atirei – Brooklyn?? –
– no, i’m from Slovenia. Respondeu sorrindo.
Ambos rimos. Trocamos mais duas ou três palavras nos intervalos que demarcavam as músicas, quando existiam, as notas cruas e distorcidas que ali nos levaram. Lá fora, assistia a tudo isto a Lisboa das ruas negras e bebidas do Bairro Alto, a Lisboa pueril e terna, pródiga em histórias e em histórias de amor e em perdição. Provida do ar que inspira e queima e morde. Mãe dos acolhedores prostíbulos, berço do amor e da ternura daqueles já sem mãe.
O mosh aumentava a cada riff, ao mesmo tempo que o suor e a excitação ia correndo as testas e roupas de quase todos. Uma feroz alegria subia-me a espinha. A certa altura, enquanto curtia autisticamente o som, movimentando parcialmente a cabeça e os olhos (por esta altura provavelmente já só estava acompanhado de metade da roupa que levava), vi, impelido coercivamente pelo meu pescoço, a americana (agora eslovena) que, com a cabeça ligeiramente inclinada para a frente e os olhos cerrados, mexia-se compulsivamente, fazendo os seus cabelos, num rodopio, esvoaçarem pela sala, sob o olhar espantado e hipnotizado de muitos, principalmente o meu. O meu relógio parou por momentos, apertando o tempo. Sorri, como poucas vezes fiz, e continuei a minha dança insana, por vezes até macabra, acompanhado pelo gingar, com influências da cultura setubalense e, provavelmente, pelas raízes de uma qualquer dança tribal africana, do Pedro, que, de capuz enfiado na cabeça e braços e mãos levantadas, embora perto da nuca, como que bradando ao tecto da sala e a um qualquer Deus ímpio que por ali assombrava, espalhava amor pela confusão, mosh agora por toda a sala. Em breve o concerto acabava, deixando-me num geométrico aperto de quem precisa de saber.
Fugazes momentos cavavam o tempo. Algo me agarrou as entranhas. A maneira demoníaca que estes momentos têm de abrir portas é imbecilmente triunfal. Uma enorme poça de silêncio acolhia-me - quem era este anjo exterminador? Mapa louco por descobrir, deixando-me como única pista a linguagem da fascinação.
Quis ir falar-lhe mais. Quis ir perder-me e encontrar-me. Infelizmente sumiu-se rapidamente pela treva baixa das ruas do Bairro. Tornou-se na presença obscura das coisas que compreendem a minha razão, malhando-me o peito com a curiosidade.
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Há 12 anos
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