Artigo escrito em cima da perna (esquerda) em cerca de uma hora para o jornal da terriola.
"Após a ausência no último número por questões profissionais, prodigamente volto à nossa coluna, embora desta feita desacompanhado do meu amigo e colega de coluna.
O tema deste número prende-se com matérias que pretendo abordar no mestrado que frequento actualmente, e que têm que ver essencialmente com questões derivadas da existência de um constitucional dever de protecção policial que vincula o Estado e com a ausência de acção por parte do Estado quando obrigado a actuar por imposição de um qualquer direito fundamental.
Parece-me um bom exercício pegar num exemplo que nos pode ajudar a compreender de uma forma genérica esta problemática, nomeadamente a ASAE, que de há uns tempos para cá ficou na moda.
Não há ninguém que não tenha já criticado a impetuosidade e excesso de diligência por parte da ASAE, verdadeira polícia “sanitária”, que tem deixado um rasto de fechos um pouco por todo o país, havendo já quem brinque com esta, digamos caricata, situação dizendo que a mulher do director da ASAE já nem cozinha em casa com medo que o marido lhe feche a cozinha.
Pois bem, neste caso está em causa, principalmente, uma questão de excesso de actuação por parte desta entidade, restando perguntar se esta actuação em demasia não ultrapassa (ou até atropela) o dever de protecção policial garantido pela Constituição. Na verdade, até poderíamos identificar uma distinção entre duas situações, ou dois tipos de estabelecimentos - aqueles que de alguma forma nos criam as expectativas de que estamos num sítio com certas condições (sanitárias, etc..), e outros que não nos criam qualquer expectativa, e mesmo assim vamos lá.
Quanto aos primeiros estabelecimentos faria todo o sentido a existência de uma forte intervenção por parte da ASAE, nos segundos nem tanto. Embora seja verdade que é complicado fazer uma distinção destas em termos legais, na verdade no segundo caso, imaginemos uma torpe tasca, existe quase um consentimento do cliente lesado, que mesmo sabendo que aquele estabelecimento não tem as condições necessárias impostas pela lei, vai lá. Ora, aqui em abstracto não faria muito sentido que esta protecção policial fosse muito intensa e o dever de protecção no caso em concreto poderia (ou até deveria) interpretar-se restritivamente.
Imaginemos agora o exemplo contrário, em que a ASAE pouco actuava. A partir de quando poderíamos dizer que a ASAE estaria a incorrer numa ilegalidade por falta de acção, por omissão, visto estar obrigada por um dever a proteger os cidadãos? Quando poderia alguém ir ao tribunal e dizer que a ASAE devia ter inspeccionado uma actividade qualquer e não o fez. Na verdade facilmente se consegue obviar a algo deste género, argumentando que ou não se fez aquela inspecção por falta de meios económicos (o Estado só pode fazer aquilo que é economicamente possível), ou que se vai fazer, porém ainda não houve oportunidade ou tempo…etc.
Então mas quando é que a actuação é tão insuficiente que se pode dizer que um determinado direito fundamental foi violado pelo estado? Posso avançar que esta é uma questão praticamente ainda não estudada a nível nacional e mesmo internacional, embora exista um certo avanço (dogmático) na Alemanha quanto a este assunto. Na verdade quase todos admitem que se o Estado simplesmente não actuar, quando esteja vinculado por um direito fundamental qualquer, está a violar algo. Mas praticamente quase ninguém consegue dizer a partir de quando é que essa omissão se torna relevante, ou seja quais são os critérios para dizer que o Estado actuou menos do que aquilo a que estava obrigado. Uma primeira resposta poderá ser a de que se por falta de actuação do Estado se ponha em causa a dignidade da pessoa humana. Imagine-se por exemplo um caso extremo em que a omissão do Estado leva à possível morte de pessoas. Mas certamente existirão casos não tão extremos e que no entanto essa falta de omissão do Estado é também relevante e judicialmente invocável.
Ora, infelizmente, por agora ainda não consigo avançar um critério unívoco que consiga dizer quando é que haverá uma “omissão violadora”. De qualquer forma, qualquer critério a usar terá de ser ponderado consoante cada caso concreto, e deverá apoiar-se em juízos de proporcionalidade, adequação e necessidade. Mas por agora, pelo menos, podemos já afirmar que se o Estado estiver vinculado constitucionalmente a algo, por exemplo por um dever de protecção policial, e não actuar, pelo menos de uma forma mínima, e isto tendo em conta o caso em concreto e que seja uma omissão desproporcional, podemos estar perante algo que pode ser invocado em Tribunal contra o Estado.
Para finalizar imaginemos outro exemplo, a Constituição diz qualquer coisa como todos têm direito a uma habitação. Ora, será que isto quer dizer que qualquer pessoa pode dirigir-se ao Governo e pedir uma casa? Obviamente que não, até porque economicamente seria algo de concretização impossível. O que a Constituição quer dizer é que o Estado deve criar estruturas dentro das suas possibilidades para que todos tenham uma habitação condigna. Ora se o Estado nada fizer para que isto aconteça poderemos dizer que o Estado está a violar o direito fundamental a uma habitação condigna por omissão. Esperando que o texto não se tenha tornado demasiado técnico e que seja minimamente interessante para quem o ler (ou então estarei aqui a violar qualquer coisa), aproveito para desejar um bom ano a todos."
O tema deste número prende-se com matérias que pretendo abordar no mestrado que frequento actualmente, e que têm que ver essencialmente com questões derivadas da existência de um constitucional dever de protecção policial que vincula o Estado e com a ausência de acção por parte do Estado quando obrigado a actuar por imposição de um qualquer direito fundamental.
Parece-me um bom exercício pegar num exemplo que nos pode ajudar a compreender de uma forma genérica esta problemática, nomeadamente a ASAE, que de há uns tempos para cá ficou na moda.
Não há ninguém que não tenha já criticado a impetuosidade e excesso de diligência por parte da ASAE, verdadeira polícia “sanitária”, que tem deixado um rasto de fechos um pouco por todo o país, havendo já quem brinque com esta, digamos caricata, situação dizendo que a mulher do director da ASAE já nem cozinha em casa com medo que o marido lhe feche a cozinha.
Pois bem, neste caso está em causa, principalmente, uma questão de excesso de actuação por parte desta entidade, restando perguntar se esta actuação em demasia não ultrapassa (ou até atropela) o dever de protecção policial garantido pela Constituição. Na verdade, até poderíamos identificar uma distinção entre duas situações, ou dois tipos de estabelecimentos - aqueles que de alguma forma nos criam as expectativas de que estamos num sítio com certas condições (sanitárias, etc..), e outros que não nos criam qualquer expectativa, e mesmo assim vamos lá.
Quanto aos primeiros estabelecimentos faria todo o sentido a existência de uma forte intervenção por parte da ASAE, nos segundos nem tanto. Embora seja verdade que é complicado fazer uma distinção destas em termos legais, na verdade no segundo caso, imaginemos uma torpe tasca, existe quase um consentimento do cliente lesado, que mesmo sabendo que aquele estabelecimento não tem as condições necessárias impostas pela lei, vai lá. Ora, aqui em abstracto não faria muito sentido que esta protecção policial fosse muito intensa e o dever de protecção no caso em concreto poderia (ou até deveria) interpretar-se restritivamente.
Imaginemos agora o exemplo contrário, em que a ASAE pouco actuava. A partir de quando poderíamos dizer que a ASAE estaria a incorrer numa ilegalidade por falta de acção, por omissão, visto estar obrigada por um dever a proteger os cidadãos? Quando poderia alguém ir ao tribunal e dizer que a ASAE devia ter inspeccionado uma actividade qualquer e não o fez. Na verdade facilmente se consegue obviar a algo deste género, argumentando que ou não se fez aquela inspecção por falta de meios económicos (o Estado só pode fazer aquilo que é economicamente possível), ou que se vai fazer, porém ainda não houve oportunidade ou tempo…etc.
Então mas quando é que a actuação é tão insuficiente que se pode dizer que um determinado direito fundamental foi violado pelo estado? Posso avançar que esta é uma questão praticamente ainda não estudada a nível nacional e mesmo internacional, embora exista um certo avanço (dogmático) na Alemanha quanto a este assunto. Na verdade quase todos admitem que se o Estado simplesmente não actuar, quando esteja vinculado por um direito fundamental qualquer, está a violar algo. Mas praticamente quase ninguém consegue dizer a partir de quando é que essa omissão se torna relevante, ou seja quais são os critérios para dizer que o Estado actuou menos do que aquilo a que estava obrigado. Uma primeira resposta poderá ser a de que se por falta de actuação do Estado se ponha em causa a dignidade da pessoa humana. Imagine-se por exemplo um caso extremo em que a omissão do Estado leva à possível morte de pessoas. Mas certamente existirão casos não tão extremos e que no entanto essa falta de omissão do Estado é também relevante e judicialmente invocável.
Ora, infelizmente, por agora ainda não consigo avançar um critério unívoco que consiga dizer quando é que haverá uma “omissão violadora”. De qualquer forma, qualquer critério a usar terá de ser ponderado consoante cada caso concreto, e deverá apoiar-se em juízos de proporcionalidade, adequação e necessidade. Mas por agora, pelo menos, podemos já afirmar que se o Estado estiver vinculado constitucionalmente a algo, por exemplo por um dever de protecção policial, e não actuar, pelo menos de uma forma mínima, e isto tendo em conta o caso em concreto e que seja uma omissão desproporcional, podemos estar perante algo que pode ser invocado em Tribunal contra o Estado.
Para finalizar imaginemos outro exemplo, a Constituição diz qualquer coisa como todos têm direito a uma habitação. Ora, será que isto quer dizer que qualquer pessoa pode dirigir-se ao Governo e pedir uma casa? Obviamente que não, até porque economicamente seria algo de concretização impossível. O que a Constituição quer dizer é que o Estado deve criar estruturas dentro das suas possibilidades para que todos tenham uma habitação condigna. Ora se o Estado nada fizer para que isto aconteça poderemos dizer que o Estado está a violar o direito fundamental a uma habitação condigna por omissão. Esperando que o texto não se tenha tornado demasiado técnico e que seja minimamente interessante para quem o ler (ou então estarei aqui a violar qualquer coisa), aproveito para desejar um bom ano a todos."
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