sexta-feira, fevereiro 27, 2009

Isto não é censura, isto é…

Costuma afirmar-se por aí que a nossa democracia é ainda verde para tentar justificar e explicar aberrações que vão marcando a actualidade, o que me irrita especialmente. Ainda que assim o seja, a nossa democracia tem apenas cerca de trinta e cinco anos, não podemos esquecer que estamos inseridos numa realidade, supostamente, de primeiro mundo e seguimos os ventos franceses e alemães, onde se encontram, muito provavelmente, as democracias mais avançadas do mundo.
Aconteceu há uns dias algo que não sei ao certo como o classificar. Tratar-se-á, no mínimo, de um atentado à nossa jovem democracia, para além de uma arrepiante demonstração de ignorância por parte dos caricaturais intervenientes que fizeram esta notícia.
Basicamente, alguns agentes da Polícia de Segurança Pública de Braga apreenderam vários exemplares de um livro - Pornocracia, de Catherine Breillat - que reproduzia na capa um célebre quadro de Courbet, “A Origem do Mundo”. Qual demónio, este quadro retrata uma mulher nua, nomeadamente de uma perspectiva que foca frontalmente o sexo da mulher (como poderia focar a unha do anelar da mão direita).
Ora, após queixa pela actuação policial neste caso, a PSP de Braga foi obrigada a devolver, por ordem da sua Direcção Nacional, os livros apreendidos na feira do livro, com a justificação de que a obra em causa reproduz uma obra de arte e, logo, não existia fundamento para a respectiva apreensão.
Estivéssemos nós em tempos de antigo regime, às mãos da PIDE e estava em causa um típico acto de censura como tantos outros, com base na defesa do Estado, política e religião. A justificação apresentada pela PSP de Braga para a apreensão residiu no facto de esta constituir uma mera medida preventiva com o intuito de evitar desacatos entre os livreiros e pais de crianças, por supostamente alguns pais se terem queixado do obsceno que os livros carregavam, não se tratando assim de um acto de censura. Aqui concordamos plenamente - isto não é censura, é pura estupidez. A começar nas queixas dos pais e a acabar na actuação da PSP. Pais estes que depois assistem babosamente à artista Ana Malhoa no programa da tarde ou ensinam as didácticas letras do fenómeno Quim Barreiros às suas criancinhas porque tem piada. Na verdade, até uma criança de seis anos, por muito que sentisse curiosidade perante a imagem, saberia que não se tratava de pornografia. De qualquer forma, há que ter em conta o perigo que uma imagem destas poderia trazer para a joaninha, um dia mais tarde ainda se tornava menina da vida, ou o coitado do joãozinho que ainda acabava a vender heroína na EB 2.3..
Muito sinceramente tenho adormecido a perguntar-me sobre tamanho exercício de perspicácia policial demonstrada pelos senhores agentes que, ao observarem a imagem que o livro carregava, rapidamente se aperceberam do perigo que ali estava em causa, ou não fosse esta a actual razão de ser da ideia de polícia, e diligentemente, mais uma vez, foram os heróis do dia. Pensar eu que em escrito recente defendi que a conotação negativa que o conceito de polícia carrega já desde os tempos da PIDE deve ser afastada, tendo em conta o actual papel da polícia na sociedade. Pelos vistos, ainda existe alguma razão de ser nas muitas queixas sobre forma como a actuação de polícia se desenrola. Basta lembrar o infindável burburinho sobre isto que se tem ouvido pela nossa terra.
A continuar assim, e seguindo o mesmo raciocínio, ainda teremos apreensões em massa de chouriças e derivados na Feira dos Enchidos, ou não possuíssem estas uma ordinária forma fálica, capaz de envergonhar qualquer um, quanto mais permitir que inocentes criancinhas, em exercitação de curiosidade, observem os nossos famosos petiscos.

in Jornal de Monchique

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